Antes que suas mãos estivessem
debruçadas sobre livros e escritos, construíram as pontes da sobrevivência
interligando os momentos de dificuldades aos caminhos do paraíso que sonhava
percorrer. Seu pai foi como raio de sol passando pela vidraça para esvair-se
nas sombras. Sua mãe, Maria, a humilde imigrante portuguesa, vocacionada para
tarefas domésticas nas casas mais afortunadas, não podia manter-se, nem ao
filho se dispensasse a ajuda preciosa do menino mal nascido.
Poderia
compará-lo a uma dúzia de heróis da literatura universal. Seria o personagem de
Eugene O'Neill contemplando sombrio entardecer e refletindo: "não há
presente, nem futuro. Só o passado acontece e torna a acontecer, agora".Ou
Judas Fawley, o obscuro, de Thomas Hardy, que ávido de leituras sonhava com as
escrivaninhas de Christminster, seus livros e quartos clareados por
bruxuleantes lamparinas. Talvez o velho marinheiro da balada de Coleridge, que
por muito tempo, mar afora, sentia o inimigo cruel seguir-lhe os passos e
repetia para si mesmo como se fosse prece diuturna: "Girando ao redor da
noite, o fogo da morte dança; qual óleo de feiticeiras a água ferve, verde,
azul e branca".
Quando
o conheci já a tempestade da doença desabara sobre sua vida. Lentamente a
matéria esgarçava-se enquanto crescia a teimosia do espírito. Transitando nos
frios e indiferentes corredores da Câmara dos Deputados, sua figura quase
mítica parecia flutuar impulsionada pela derradeira lufada de vento. Era o
velho engraxate, o antigo barbeiro, o mesmo garçom disciplinado, fragmentado e
somado num só corpo, vivendo odisséia permanente.
Sua
vitoriosa trajetória depois que alcançou os livros para educar-se, informa o
fenômeno que foi Florestan Fernandes. Sem poder cumprir seus primeiros anos de
estudo dentro do sistema formal e regular de educação, chega à universidade
depois de prestar exames de madureza correspondentes aos primeiro e segundo
graus de ensino. Imagino as noites alongadas, o esforço hercúleo para quebrar
as algemas da fadiga impostas pelas atividades exigidas no mercado informal de
trabalho que atendia. Quem sabe não terá vezes repetidas adormecido sobre
páginas sonhando com leões libertos nas clareiras africanas, semelhante ao velho
Santiago de Hemingway que para derrotar o espadarte sacrificava as mãos e
cochilava recostado nas bordas e remos do seu barco, enquanto
mergulhava momentaneamente no mistério. Não obstante as
atribulações, sua admissão universitária foi surpreendente. Num grupo de 29
candidatos classificou-se entre os primeiros e aos 25 anos publicava o primeiro
dos seus 56 livros, o que torna indiscutível sua contribuição ao pensamento
brasileiro, analisando e propondo saídas sobre questões em torno da organização
social e política de uma nação.
Tudo
o que for dito acerca de Florestan Fernandes parecerá muito pouco. Seus
momentos como pai de seis filhos, avô e bisavô e que ainda encontra tempo para
escrever "A Revolução Burguesa", "O Negro no Mundo dos
Brancos", "Reforma ou Revolução", "Educação e Sociedade no
Brasil", "Brasil: Em Compasso de Espera", todas escritas sem a
presunção de ser proprietário de nenhuma verdade que não fosse possível de ser
comprovada por realidades concretas. Excluído no princípio, converteu-se por
vontade própria e graças à sua inteligência num precioso intelectual. O golpe
de 1964 determinou sua expulsão da USP, retirando-lhe a cidadania. O exílio que
muitas vezes mata de melancolia não conseguiu destrui-lo e acabou fortalecendo
suas crenças, fê-lo conhecido para ser reverenciado no Canadá, Holanda e
Portugal onde, em Coimbra, viu estudantes e mestres estenderem sobre seus
ombros cansados e saudosos as capas da tradição e as vestes professorais. Por
ironia do destino ao contrário de Fernando Henrique Cardoso, considerado seu
discípulo mais renomado, angústias e violências jamais o induziram a revisar
suas teses acadêmicas, substituindo-as por conceitos neo liberais. Político por
convicção, veio ao Parlamento na Constituinte para engajar-se na luta dos
trabalhadores defendendo com redobrado empenho duas de suas bandeiras mais
expressivas: a educação como forma de liberdade e a questão das minorias
raciais. Sem ódios e sem ressentimentos abandonou a vida pública para regressar
definitivamente ao corpo da família e tentar concluir sua 57a. obra, que
lamentavelmente deixou inacabada.
Florestan
Fernandes ou simplesmente Florestan, uma dessas jóias que transformamos em
lenda guardando para sempre. Companheiro das Parcas nunca se deu conta da
"hora de abrigar-se do sol, a hora do seu crepúsculo e da sua queda
dolorosa". Átropos fez-lhe a messe numa solitária UTI de hospital e como
Pequeno Príncipe "tombou devagarzinho como uma árvore tomba".
Gostaria
de imaginá-lo, sempre, astro luminoso que não morrerá de todo, dizendo
confiante à lua vespertina: "Não demora ou serás parte do mistério, quando
desconhecido venha inesperado ceifar minhas roseiras. Corre sem tardar no
fictício azul, pálida janela. Tenho pressa, antes que me façam átomo disperso
na sombria noite do universo".

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